Pela primeira vez, Indicador de Alfabetismo Funcional inclui dados sobre o alfabetismo no contexto digital
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Rosalina Soares, Superintendente de Conhecimento da Fundação Roberto Marinho, comenta resultados da pesquisa

Três em cada dez brasileiros apresentam dificuldades para a resolução de problemas simples do cotidiano relacionado usando textos e números, a informação é da nova edição do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), que pode ser acessada clicando aqui. O levantamento aponta que 29% dos brasileiros entre 15 e 64 anos estão nessa condição, mesmo patamar verificado em 2018, ano em que a série histórica da pesquisa foi interrompida devido à pandemia de Covid-19.
Aqueles que estão nos níveis mais baixos de letramento também apresentam dificuldades para realizar operações no contexto digital. Aproximadamente 78% dos participantes da pesquisa apresentaram desempenho baixo ou médio nas atividades digitais propostas.
Diferente das avaliações escolares, o Inaf mensura o conhecimento aplicado em situações da vida cotidiana. Os níveis de alfabetismo são definidos a partir do desempenho em um teste que avalia habilidades relacionadas a textos – chamadas de letramento – e aos números, designadas como numeramento.
O Inaf define cinco níveis de alfabetismo, refletindo assim os diferentes graus de apropriação das habilidades de leitura, escrita e matemática em diferentes campos da vida em sociedade. Os dois primeiros, Analfabeto e Rudimentar, são associados ao conceito de Analfabetismo Funcional; o nível Elementar – que representa a maior parte da população brasileira – é caracterizado pela capacidade de selecionar informações em textos médios e de solucionar operações matemáticas básicas; os dois níveis mais altos, Intermediário e Proficiente, são tratados em conjunto, como Alfabetismo Consolidado.

A série histórica demonstra que, após a redução contínua na proporção de analfabetos funcionais até 2009, o número tem se mantido estável desde então. Ana Lima, coordenadora do estudo, destaca que nas últimas duas décadas o país viveu avanços significativos na expansão do acesso à educação pública. “Esse intenso crescimento refletiu-se na importante redução dos analfabetos funcionais. O importante agora é assegurar avanços no desenvolvimento contínuo das habilidades de letramento e numeramento dos brasileiros, tanto para aqueles que ainda estão na escola quanto para os que já estão fora dela”, avalia.
“Os indicadores apontam que estamos diante de um momento gravíssimo. Potencializado em meio à transformação digital acelerada pela inteligência artificial e aos profundos desafios das mudanças climáticas, os países se diferenciarão, sobretudo, pela capacidade de formar sua juventude, desenvolver talentos e retê-los para atuar nessas duas novas fronteiras. É alarmante saber que apenas 10% da população brasileira é considerada proficiente em leitura, escrita e matemática. Como enfrentar a desigualdade e ampliar a produtividade com uma população nessas condições?”, questiona Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú.
Alfabetismo no contexto digital
A edição 2024 do Inaf traz a inclusão do alfabetismo no contexto digital. Além de medir o uso social da leitura, da escrita e da matemática em situações do cotidiano, tornou-se necessário refletir as transformações tecnológicas que vêm ocorrendo no modo como as pessoas se informam, estudam e trabalham, consomem e se desenvolvem individual e coletivamente. Os resultados obtidos permitem avançar no entendimento de como o nível de alfabetismo influencia a capacidade das pessoas de lidarem com textos e informações numéricas no ambiente digital.
O estudo também oferece algumas pistas sobre como o consumo e a produção de informações nesse ambiente podem ampliar ou limitar as possibilidades de inserção plena dos indivíduos em uma sociedade tecnológica.
Para compreender melhor os resultados, entrevistamos Rosalina Soares, Superintendente de Conhecimento da Fundação Roberto Marinho. Especialista em pesquisa e avaliação, Rosalina contextualiza os achados do estudo, relacionando-os a outros desafios e indicadores da educação brasileira.
FRM: A taxa de analfabetismo funcional permanece em 29%, o mesmo percentual da última edição do Inaf (2018). Como interpretar esse dado?
Rosalina Soares: Podemos avaliar esse resultado tanto do ponto de vista da qualidade do ensino como do acesso à educação. Temos cerca de 68 milhões de brasileiros com 18 anos ou mais que estão fora da escola e não concluíram a educação básica, o que representa mais de 40% dessa faixa etária. Embora o acesso à escola tenha melhorado, o desafio de inclusão educacional, principalmente entre adultos e idosos, permanece.
Mesmo entre os que frequentam a escola, os resultados do Saeb indicam baixo desempenho em leitura e matemática, especialmente no ensino médio. E é importante lembrar: quem aprende menos são os estudantes de baixo nível socioeconômico e negros, como também aponta o Inaf. Isso revela o quanto ainda precisamos avançar em equidade educacional.
FRM: Quais são os caminhos possíveis para mudar esse cenário?
Rosalina Soares: Precisamos garantir acesso, permanência e aprendizagem de qualidade. É urgente que a escola promova o letramento considerando a aplicação dos textos na vida prática, incluindo o ambiente digital. Avaliações como o Saeb precisam ser reformuladas para refletirem mais o cotidiano real dos estudantes. Precisamos compreender que as avaliações nacionais influenciam diretamente o que a escola trabalha e são utilizadas para o aprimoramento ou construção de políticas públicas. Por isso, a reformulação é tão importante.
Outra perspectiva importante é a necessidade de o país avançar mais rapidamente com a redução do número de pessoas que estão fora da escola sem concluir a educação básica. A Educação de Jovens e Adultos (EJA) vem encolhendo, com queda no número de matrículas ano após ano. Além disso, o país ainda não tem uma proposta estruturada para a avaliação da qualidade da EJA. Muitas dessas pessoas tiveram o direito à educação negado e precisam de oportunidades com qualidade, que considerem seus contextos de vida, trabalho e cuidado com a família.
FRM: Os resultados mostram que quanto mais frágil é o letramento do indivíduo, mais dificuldade ele tem para realizar ações no ambiente digital. De que forma essas questões se relacionam?
Rosalina Soares: Uma pesquisa que acabamos de concluir sobre hábitos de mídia educativa mostrou que quase 90% da população utiliza mídias digitais. Apesar disso, o letramento digital ainda não faz parte do currículo da educação básica.
Estudos indicam que a inteligência artificial pode aprofundar as desigualdades sociais, excluindo ainda mais aqueles que historicamente já vêm sendo excluídos. Neste momento, a educação precisa preparar as pessoas para lidarem com o mundo digital — um mundo que traz ameaças à democracia e muita desinformação em todas as áreas da vida. Como esperar que uma pessoa com dificuldades de leitura consiga identificar o que é verdadeiro ou falso no ambiente digital? É urgente repensar o currículo, incluindo o letramento digital de forma estruturada.
FRM: Qual o papel da produção de conhecimento para a formulação de políticas públicas?
Rosalina Soares: O Inaf é diferente de outras avaliações porque mede o conhecimento aplicado — ou seja, o que as pessoas conseguem fazer com o que aprenderam. Essa informação é essencial para a construção de políticas públicas que realmente dialoguem com a realidade.
Precisamos garantir a inclusão de quem está fora da escola e melhorar a qualidade do ensino. Isso só é possível com dados e análises consistentes que possibilitam aos gestores públicos e tomadores de decisão a compreensão mais completa do problema. Essas informações subsidiam o aprimoramento ou a construção de novas políticas públicas. Então, produzir conhecimento é fundamental para transformar a realidade.
FRM: De que forma a Fundação Roberto Marinho tem atuado na produção de conhecimento sobre letramento e inclusão digital?
Rosalina Soares: A Fundação trabalha diretamente com essa causa. Nossa atuação foca especialmente em pessoas que estão fora da escola e não concluíram a educação básica. Essa população pode até estar alfabetizada — sabe juntar letras e ler pequenas frases, por exemplo —, mas o Inaf trata de algo mais profundo. Letramento é diferente de alfabetização. Letramento é a capacidade de compreender o que se lê, de acessar diferentes tipos de textos e de aplicar o raciocínio matemático em situações do cotidiano.
Os projetos e materiais desenvolvidos pela Fundação buscam, justamente, melhorar as habilidades de letramento e de numeramento deste público. Nossa metodologia, chamada "Incluir para Transformar", propõe ampliar a leitura de mundo por meio de textos diversos e leitura crítica. Também investimos em estudos, como a pesquisa "Juventude Fora da Escola" e, mais recentemente, um estudo em parceria com o Insper e o Itaú sobre os impactos da EJA no mercado de trabalho. O estudo investiga como a conclusão da EJA pode favorecer a inclusão ou a permanência digna no mercado de trabalho.
Essas ações têm como base o compromisso de promover equidade e fortalecer políticas públicas por meio da produção e uso inteligente de dados. A Fundação Roberto Marinho atua bastante nessa seara de produção de conhecimento e o Inaf trata de uma causa que é muito valiosa para a perspectiva de educação que trabalhamos e defendemos.
Sobre o Inaf 2024
O Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) mede os níveis de Alfabetismo da população brasileira de 15 a 64 anos por meio de um teste aplicado presencialmente envolvendo a leitura e interpretação de textos do cotidiano. Foi desenvolvido pela organização social Ação Educativa e pelo Instituto Paulo Montenegro/IBOPE e implementado em parceria por estas duas organizações entre 2001 e 2015. Com o encerramento das atividades do IBOPE e do Instituto Paulo Montenegro, a parceria passa a ser entre a Ação Educativa e a Conhecimento Social. Saiba mais: https://alfabetismofuncional.org.br/
Coordenada pela Ação Educativa e pela Conhecimento Social, a edição 2024 do Inaf é uma co-realização da Fundação Itaú, em parceria com a Fundação Roberto Marinho, Instituto Unibanco, UNESCO e UNICEF.